A luta dos feminismos há muito tem sido: direitos iguais aos dos homens. Das cores ou etnias submetidas: direitos iguais aos dos brancos e a dos homossexuais: direitos iguais ao dos heterossexuais. Isso implica dizer que há várias lutas para ocupar conjuntamente o mesmo direito de usufruir do espaço social que por muito tempo pertenceu a supremacia do homem branco e hetero.
Mas pouco paramos para refletir - afinal, a luta ainda é gigante -, sobre o que seria esse espaço. Em quê ele é legítimo? Lutamos pelas mesmas liberdades, pelo mesmo poder (política) de atuação. Entretanto, muitos desses "poderes de ação" não seriam inadequados perante o meio?
Trato aqui, pois, de uma questão que abrange a tão conhecida e naturalizada arrogância humana que é o seu habitual costume de atuar sobre o planeta: como se ele fosse uma propriedade sua. O patriarcado branco apenas incluiu a mulher (e as etnias submetidas) no rol planetário de suas propriedades, já que o mundo, supunham, pertencia a eles. Hoje, bradamos ferozmente que pertence a todos nós. Será mesmo?
Vou me delimitar aqui, enquanto mulher branca e hetero, ao que me compete: a igualdade de gênero. Acredito que os movimentos feministas em geral margeiam por diversos pontos polêmicos, que muita vezes se mesclam com os princípios de origens patriarcais. Um grande paradoxo. E penso muito a respeito disso. E considero compreensível que os feminismos também tenham arraigado em si conceitos e princípios que remetem a uma visão comum a do patriarcado sobre o mundo, afinal o movimentos se originaram em razão de um mundo machista e no meio de filosofias egocêntricas.
Estamos num mundo capitalista, de competição, de vitoriosos e perdedores. Vivemos ainda sobre a concepção de que o planeta e tudo que nele há é uma propriedade nossa, que podemos manipular à vontade - ainda que obedecendo a alguns preceitos éticos conquistados com o tempo, mas, ainda muito poucos.
Tornamo-nos tão abstratos que chegamos ao ponto de acreditar que uma interpretação empírica e científica sobre a natureza é a própria natureza em si e não a nossa concepção sobre ela. Ou seja, a nossa visão humana e, portanto, parcial aos nossos interesses e limitações.
Precisamos nos recordar sempre de que primeiro produzimos hipóteses e só depois colhemos provas, para que elas justamente cumpram a sua função de comprovar a veracidade ou não daquela premissa levantada. E o que isso significa? Que as próprias provas a serem buscadas estão condicionadas a um posicionamento anterior, a uma direção determinada. É como se existisse uma pluralidade de caminhos e então apontamos uma direção e lá colhemos os fatos que nos garantirão que, afinal, escolhemos certo. Que aquilo é o mais verdadeiro ou correto.
É bem verdade que temos uma tecnologia e ciências medicinais, físicas, etc e tal incríveis! E sim, são feitos maravilhosos. Mas precisamos estar conscientes, que tais produções são consequências de um caminho que foi escolhido. Os indígenas da América do século XIV não eram inferiores aos europeus só porque possuíam uma "tecnologia" e estilo de vida completamente diferentes. Eles escolheram um caminho que levou aquelas consequências. Os caminhos são plurais. E a "verdade" é o que escolhemos, porque é um conceito humano.
Vejamos um pequeno exemplo: o discurso biológico cientifico e socialmente legitimado alega que o ato sexual foi feito para a procriação. Essa seria a sua razão de existir. E assim o concluíram a partir de uma observação empírica de que o resultado de determinados atos sexuais podem desencadear uma nova prole. E então eles determinaram que a Natureza criou o sexo para a reprodução da vida. E todo o sexo que é praticado com finalidades que fogem completamente a essa interpretação - como sexo anal, oral, homossexual (ou com anticoncepcional), foi decretado como anormal, antinatural, inútil ou em discordância com a nossa função terrena. Alguns atos foram mais intolerados que outros.
Mas se continuarmos a observar empiricamente, veremos que várias espécies na natureza praticam sexo homossexual. Porém, como não se encaixam na interpretação humana que resolveu decretar o que a natureza é, eles explicam que tais atos se tratam de um distúrbio natural, de uma anomalia.
Compreendem? É a própria natureza que passa a ser anormal (!) e não a interpretação humana que se faz sobre ela, tamanha a nossa arrogância.
Desde tempos remotos baseamos a nossa filosofia, a nossa visão política e de mundo, as nossas religiões e ciências tendo o ser humano como o centro de tudo. E é compreensível, porque estamos condicionados ao nosso corpo e não podemos ver o mundo senão pelo prisma de nossos olhos e da mesma forma não podemos separá-lo de nossos interesses próprios. Porque simplesmente não podemos nos desvincular de nós mesmos.
No entanto, o que é urgente compreendermos é o fato de que FAZEMOS PARTE desse mundo. E é de nosso interesse que os demais componentes do planeta sejam respeitados. Mesmo que seja meramente por uma razão egoísta, sem qualquer empatia: Nós precisamos do todo.
Tal como crianças que quando bebês parecem se sentir o centro das atenções e, na medida que crescem, percebem que são parte de uma família, assim eu vejo a humanidade. Conforme o tempo passa, as sociedades (e não necessariamente os indivíduos) - porque têm memória - têm percebido que fazem parte de algo maior que elas próprias. E então o Direito deve procurar acompanhar essas mudanças, bem como as demais ciências e políticas. O problema é que existem indivíduos E indivíduos.
O discurso do aborto (seja ele pró ou contra) é um outro exemplo de como discursos biológicos e da luta pelo poder de ação individual - em sua concepção mais tradicional - ainda estão presentes em nossa atualidade. Eu me refiro a essa pressuposição tão arraigada de "veracidade histórica" que tanto tem legitimado o "eu" - ser humano - sobre o "resto", o planeta.
A diferença é que no caso dos discursos pró aborto, a mulher se coloca como ser humano e, como tal, reivindica toda a supremacia desse ser supremo (o humano) para usufruir do seu direito de decidir do "eu" atuando sobre o "resto". Enquanto que o discurso contra o aborto é tradicional, de cunho patriarcal que continua colocando a mulher no rol dos "restos".
Mas, de uma forma ou de outra, o discurso arcaico em si, da arrogância humana, da sua concepção sobre si mesmo como centro do universo, que pode se basear e se legitimar em provas e em discursos tendenciosos para satisfazer o seus interesses próprios, continua o mesmo. Política, anyway, é um eterno jogo de poder: de poder fazer e de poder decidir sobre o que fazer com o resto.
Ainda não evoluímos o suficiente para compreender que somos parte do "resto". Se já tivéssemos evoluído, o "resto" deixaria de ser encarado como tal.
Foto: Henrique Llamas
https://www.facebook.com/H13Fotografia
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